quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O mal

O mal que me aflige e devora
é tratar o papel e a pena por "tu":
o papel faz-me sentir nu por fora
e a pena, por dentro, faz-me sentir nu

Não ouso dizer aquilo que adivinho;
as palavras mais belas, essas, guardei-as
num antigo e infindável pergaminho
escrito com a tinta que corre nas veias.

Mas sinto tristeza por não ter o porte
para ser homem mais uno, mais alto, mais forte,
para dizer ao mundo num brado intenso

que a minha pena, brava, ninguém cala,
e que escrevo no papel como quem fala
ao invés de falar tudo aquilo que penso.

Coimbra, 26/12/2005

Paradoxo

Amar mas não ser amado
ser amada mas não amar
vi isto em qualquer lado
num qualquer outro lugar

Não querer o que se tem
querer o que não se pode ter
nada disto parece bem
mas é vulgar acontecer

O paradoxo, então, é este:
é tudo uma contradição
quando o cérebro está a leste
ou quando pensa o coração.

Coimbra, 27/11/2005

Obliteração

Não te pedi o mundo em troca
quando os meus lábios, em tom carnal,
trocaram segredos com a tua boca...
...não importa... deixa, não faz mal.

Porque nem o dia a noite invoca,
nem o doce conjura o sal;
assim somos nós: uma ideia louca
onde não existe nós, mas "cada qual".

E nesses instantes em que me atormento,
em que fica turvo o pensamento,
em que toda a esperança se vai

a minha alma fica um poço exaurido
que de tanto dele terem extraído
nada, mas mais nada sai.

Coimbra, 15/02/2006

Encontro na urbe e no seu imo imerso
em sombras, frio, sujidade e pó
o eu interior, que como pó disperso
se dispersa entre a vasta turba, só.

Só entre mares de gente sem rumo,
cordeiros que não pressentem o alerta
de viver à deriva, ao acaso, como fumo
de forma indistinta, vaga e incerta.

Queria ser o homem (no meio de ninguém)
que um dia, cansado, quis ser alguém
entre tantos casulos desprovidos de almas

Homem cujos olhos pudessem brilhar
quando fixos na visão singular
de homens como ele batendo-lhe palmas.

Coimbra, 27/11/2006

Neve

Neve nas ruas, noite fraternal
divina brancura que se pode ver
unem-se famílias na ceia de Natal
(e há pobres na rua sem nada que comer)

Os mais pequenos vibram com esperanças
de ver o trenó e as renas na lua
(essa mesma que se esquece das crianças
que morrem de frio e de fome na rua)

E a neve não pára! A cada segundo
tinge de branco cada canto do mundo,
neve alvíssima que tudo cobre:

aldeias, vilas, cidades, nações...
...olhos, ouvidos, bocas, corações...
... neva no mundo! (e que mundo tão pobre...!)

Lisboa, 13/09/2008

Arbórea

Como é que só eu posso imaginar
um reino erguido acima dos galhos
(vasto até onde a vista pode alcançar)
de cedros, abetos, pinheiros e carvalhos?

E quem, senão eu, para nele habitar?
Saciar a fome com folhas e bogalhos,
dormir no seu ventre, e ao despertar
deliciar-me com os seus frescos orvalhos

Deixaria para trás as povoações,
renegaria o mundo e as suas nações,
trocaria as cidades pelas giestas...

...quando as árvores fossem minhas imperatrizes
e o meu corpo se tornasse em raízes
e o meu sangue seivasse pelas florestas...

Coimbra, 23/01/2006